CIÊNCIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE

07/08/2011 15:16

CIÊNCIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original: 25/1/08; última versão: 21/6/10
Versão em inglês: "Science, religion and spirituality"

1. Introdução

Muito se tem falado ultimamente sobre o tema "Ciência e Religião" ou "Ciência e Espiritualidade". Por exemplo, a Boyle Lecture de 2005, dada por Simon Conway Morris, tratou justamente desses assuntos. O recente livro de Richard Dawkins The God Delusion (traduzido impropriamente como Deus, um Delírio) trata de mostrar que o conceito de Deus e as religiões são um engano, e até mesmo que "a existência de Deus é uma hipótese científica como qualquer outra", isto é, propõe que a questão da existência ou não de Deus seja tratada cientificamente [DAW b, p. 72]. Em novembro de 2007 assisti em um congresso de medicina a uma mesa redonda com o título "Ciência e espiritualidade", e fiquei muito insatisfeito com o que nela foi exposto. Por outro lado, recebi algumas críticas sobre meu artigo "Por que sou espiritualista", e percebi que precisava deixar alguns pontos mais claros. Com isso, resolvi ordenar e expor minhas ideias a respeito do tópico do título do presente artigo, fazendo também incursões na ciência, no materialismo e nas religiões instituídas, ou confissões, complementando várias ideias expostas no artigo citado. Vou discorrer sobre o infeliz abismo existente entre ciência e religião, que poderia ser eliminado com mudanças em ambas, por meio do que vou caracterizar como "espiritualidade científica". Para chegar a caracterizar esse tipo de espiritualidade, que envolve hipóteses de trabalho e não crenças, caracterizo no item 2 esses dois conceitos, salientando suas diferenças. No item 3 coloco o que considero uma atitude cognitiva correta, e que denominei de "atitude científica". No item 4 caracterizo o que entendo por materialismo, mostrando que existem dois tipos do mesmo; mostro que a partir dessa visão de mundo, se for coerente, não se podem admitir várias características humanas, especialmente o livre-arbítrio. No item 5 abordo o espiritualismo, do qual caracterizo também dois tipos, sendo um deles o que denominei de "espiritualismo científico", que usa uma atitude científica na cognição. Adotando-se uma visão de mundo espiritualista científica, características humanas que não fazem sentido de um ponto de materialista passam a poder ser admitidas. O item 6 mostra como há visões de mundo que são combinações de materialismo com espiritualismo. A ciência moderna é examinada no item 7, mostrando que ela é essencialmente materialista. No item 8 descrevo certas características de religiões instituídas, caracterizando o tipo de espiritualismo que elas cultivam, e mostrando que, de certos pontos de vista, elas são materialistas. O abismo atual entre ciência e religião é descrito no item 9, onde mostro como ele poderia ser suplantado por mudanças tanto numa como na outra. Coloco também que ele é devido tanto a um materialismo preconceituoso como ao tipo de espiritualismo típico das religiões instituídas. No item 10 enumero várias razões para uma pessoa sentir-se inclinada a adotar o materialismo, e no 11 faço o mesmo para o espiritualismo científico. Finalmente, no item 12 descrevo um exemplo de uma espiritualidade científica que considero adequada ao ser humano moderno, mostrando brevemente certas características da mesma e suas aplicações.

2. Hipótese e crença

No decorrer da história, o ser humano foi desenvolvendo cada vez mais seu intelecto. Uma das consequências disso é que hoje ele anseia por compreender as coisas, e não simplesmente observar fenômenos sem conseguir entender por que eles se passam. Também não lhe agrada aceitar leis e regras sociais sem compreender sua razão de ser, ou admitir teorias sem que elas lhe façam sentido, sejam logicamente coerentes e correspondam ao que ele pode observar fora e dentro de si. Parece-me que cada pessoa moderna deveria ter uma concepção consciente do mundo, uma cosmovisão (Weltanschauung); a partir dela, deveria orientar seus pensamentos, sentimentos e ações. Em termos de concepções de mundo, é importante separar o que é hipótese de trabalho e o que é crença; vejamos as características de cada uma, salientando as diferenças entre elas.

2.1 Uma hipótese é uma afirmação que é tomada como verdade e serve de base para comprovações experimentais ou para uma teoria. Esta última pode envolver várias hipóteses, e consequências das mesmas sendo, portanto, muito mais ampla. Uma característica fundamental de uma teoria é a sua coerência lógica, isto é, não deve haver contradições entre suas várias hipóteses e entre as afirmações que delas resultam.

Portanto, uma hipótese é a base para alguma compreensão conceitual de observações experimentais, isto é, para a associação mental correta entre uma percepção correta e um conceito correto, ou para a associação mental correta entre conceitos corretos que se relacionam entre si. Note-se a presença da palavra "correto" – vou admitir que existem percepções, conceitos e associações corretos e incorretos. Por exemplo, se o leitor olhar para a entrada da sala em que está e se o seu sistema visual for saudável, certamente terá inicialmente uma percepção correta de impulsos luminosos; em seguida, fará uma representação mental do objeto visto e, finalmente, fará, com o pensamento, uma associação correta com o conceito "porta". Em geral, diz-se que se "vê" uma porta, mas na verdade o que se vê são impulsos luminosos; "porta" é um conceito, uma ideia, e não pode ser visto com os olhos. Chega-se a ele por meio do pensamento, e não de uma percepção sensorial. Um contra-exemplo seria ver-se uma pessoa ao longe, e não se conseguir distinguir se é um homem ou uma mulher. Nesse caso, provavelmente está havendo um erro ou imprecisão na percepção, o que pode ser conscientizado pela dificuldade em associar à representação não nítida correspondente um dentre os dois conceitos possíveis. Um outro contra-exemplo seria ver-se o Sol movendo-se durante o dia no céu, e se fazer a essa percepção correta uma associação mental com o conceito incorreto do movimento dele em volta da Terra, em lugar de se associar a essa percepção o conceito correto de que ele está parado e a Terra está girando em torno de seu eixo.

Uma crença é uma afirmação tomada como verdade, sendo a base para uma visão de mundo que pode não envolver, parcial ou totalmente, uma compreensão conceitual. Uma crença não deve depender de comprovações experimentais. Pelo contrário, ela fecha as portas à compreensão e à investigação.

2.2 Uma hipótese deve ser formulada claramente, por meio de conceitos, e basear-se em evidências, seja por meio de observações da realidade, ou de teorias coerentes e abrangentes delas derivadas. Além disso, deve estar sempre sujeita a revisões.

Uma crença não precisa ser formulada com clareza, pois não se dirige ao intelecto; ela é aceita como verdade, e tem um caráter de permanência, isto é, não é sujeita a revisões.

2.3 Uma hipótese deve ter um caráter de objetividade, de universalidade e, portanto, não deve basear-se em sentimentos pois estes são sempre subjetivos e individuais.

Ao contrário, uma crença pode envolver conceitos (já que é impossível falar-se sem usar conceitos), mas deve basear-se fundamentalmente em sentimentos, isto é, deve ser essencialmente subjetiva: "sente-se" que uma crença é verdadeira.

2.4 Uma hipótese de trabalho deve sempre fazer parte de uma pesquisa de fatos e de uma teoria em estabelecimento ou já estabelecida.

Já uma crença é algo terminal, auto-contido. Pode fazer parte de uma cosmovisão ampla, mas não deve necessariamente levar a uma pesquisa, ao contrário, muitas vezes uma crença impede a pesquisa. Dawkins critica as religiões dizendo "um dos efeitos realmente negativos da religião é que ela nos ensina que é uma virtude ficar satisfeito com uma falta de compreensão." [DAW b, p. 152; ver também pp. 154, 159-60].

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Usarei neste texto a expressão "acreditar" como sinônimo exclusivo de "ter crença", no sentido exposto. Como exemplo, na doutrina Católica oficial, deve-se acreditar em Deus e não acreditar na reencarnação do ser humano (apesar de alguns claros indícios desse ultimo conceito no Novo Testamento). Note-se que não há uma conceituação clara de Deus, seja nessa doutrina como na de outras religiões, de modo que não se deveria falar, no sentido da caracterização 2.2, em uma "hipótese da existência de Deus", expressão empregada por Dawkins [DAW b, p. 138].

Um outro exemplo de crença é tomarem-se as imagens da Gênese como fatos literais, por exemplo considerando-se que os "dias" da "criação" foram de 24 horas, como querem muitos criacionistas bíblicos. Já uma hipótese de trabalho poderia ser a de que essas imagens são símbolos para fatos que realmente ocorreram. Nota-se por esse exemplo como uma hipótese de trabalho deve necessariamente levar a uma pesquisa: no caso, quais as realidades representadas por essas e outras imagens bíblicas. Já a crença citada não leva a nenhuma investigação ou busca de compreensão.

Usando ainda esse exemplo, é um fato que muitas pessoas consideram as imagens bíblicas como invencionices, como "historinhas". Temos aí duas possibilidades: tomar-se isso como crença ou como hipótese de trabalho. Na segunda, tenta-se justificar essa consideração especulando-se com uma teoria, por exemplo, de que o ser humano antigo tinha medos infantis, e essas "historinhas" ajudavam-no a enfrentar esse medo. Ou que o ser humano tinha necessidade de se localizar perante o passado, de modo que inventou uma cosmogonia fantasmagórica, já que não tinha naquela época a capacidade de inventar uma teoria conceitual como a do Big Bang. Aliás, essa também é uma teoria fantasmagórica; afinal, como a matéria ou a energia surgiram antes de se condensarem e explodirem? Mesmo considerando-se uma sequência de contrações e expansões, ela teve que ter um começo físico. A esse respeito, Milton Mourão Jr. sugeriu-me um interessante paradoxo: a matéria condensada no instante do Big Bang, ou logo depois dele, devia obviamente ter formado um super-buraco negro, e aí não poderia ter ocorrido nenhuma explosão. A maneira que os cosmologistas encontraram para contornar esse paradoxo é supor que nos primeiros instantes a gravitação da matéria era repulsiva, e não atrativa. Posteriormente, passa a predominar a matéria atrativa, se bem que a aparente expansão acelerada do universo visível exige novamente a presença de misteriosas matéria e energia repulsivas. Mas tudo isso é, obviamente, teoria.

3. A atitude cientifica

A atitude científica é uma das maiores conquistas da humanidade, tendo começado a desenvolver-se efetivamente, como potencialidade para todas as pessoas, após o início do século XV. Antes disso, ela aparecia de maneira parcial em um ou outro indivíduo. Ela deve ser aplicada sempre que se faz uma observação e a descrição de algo, e quando se formulam conceitos. Nessas atividades cognitivas, parece-me que essa é a atitude correta para o ser humano moderno, isto é, uma pessoa que não adota uma atitude científica na parte cognitiva de seu dia-a-dia está retornando indevidamente ao passado. No entanto, é preciso reconhecer que essa atitude não se aplica a toda a vida humana, pois nem tudo nela é cognição, como descreverei depois de expor aquilo que considero suas características fundamentais.

Na cognição, adota-se uma atitude científica se os seguintes requisitos forem satisfeitos:

3.1 Ter hipóteses de trabalho, e não ter crenças, cf. o item 2 acima.

3.2 Mantém-se uma curiosidade constante, isto é, procura-se sempre conhecer coisas e ideias novas. Se um fenômeno é observado e não compreendido, deve-se observá-lo de todos os ângulos possíveis e estudá-lo a fim de compreendê-lo. Se uma ideia não é compreendida, ou parecer estranha, deve-se fazer um esforço para estudá-la e compreendê-la.

Essa atitude significa que se deve ter um interesse por quaisquer tipos de fenômenos ou de teorias.

Um contra-exemplo a essa atitude é o fato de muito poucas pessoas saberem por que os aviões sustentam-se no ar, apesar de os verem com frequência. A compreensão desse fenômeno, devido a uma propriedade dos fluidos descoberta em 1738 por Daniel Bernoulli (1700-1782), é relativamente simples e pode ser demonstrada com imensa facilidade: basta assoprar por sobre uma folha de papel fino com a borda superior esticada entre as mãos e encostada abaixo do lábio inferior, e observar como a folha sobe.

Há muito tenho afirmado que a falta dessa curiosidade constante pode ter um efeito indesejável: o desenvolvimento de uma paralisia mental. Segundo Platão, em Menon, Sócrates vai mais longe, pois diz: "Eu disse algumas coisas sobre as quais não tenho total confiança. Mas há algo pelo qual estou pronto a lutar, em palavras e ações, até o máximo de minha capacidade: Nós seremos melhores, mais corajosos e menos impotentes se pensarmos que devemos indagar, do que seríamos se cedêssemos à inútil fantasia [indulge in the idle fancy] de que não é possível, e não há utilidade, em saber o que não sabemos." [PLA, p. 183.]

3.3 Procura-se observar objetivamente o mundo, isto é, a observação deve ater-se exclusivamente ao fenômeno; nenhum aspecto observado deve ser desprezado e a observação não deve depender de hipóteses anteriores.

Essa ação é caracterizada por uma total abertura tanto para fenômenos exteriores quanto interiores ao observador.

3.4 Procura-se compreender objetiva e conceitualmente o mundo, em especial os seres vivos e o ser humano.

3.5 Não se usam sentimentos como base de observações e formulação de conceitos a respeito dos objetos observados ou teorias estudadas.

Este requisito é consequência dos requisitos 3.3 e 3.4, e é devido ao fato de que os sentimentos são puramente subjetivos. De fato, cada pessoa tem seus sentimentos e uma outra pessoa não pode sentir os sentimentos da primeira; o que ela pode fazer é reconhecê-los, por exemplo percebendo que essa primeira pessoa está alegre ou está triste. No entanto, é impossível sentir a alegria ou tristeza que ela está sentindo.

Um exemplo do uso indevido de sentimentos na aquisição de conhecimentos seria usar a simpatia ou antipatia por uma pessoa para tirar conclusões sobre ela. É interessante notar que, quando uma pessoa tem um sentimento sobre algo, esse sentimento revela muito mais sobre essa própria pessoa do que sobre o objeto em questão. Por exemplo, uma antipatia por uma pessoa pode ser o resultado de seu rosto ser parecido com o de uma outra pessoa que fez uma ação desagradável ao observador. Um outro exemplo seria observar e estudar algum fenômeno ou objeto devido a uma simpatia com relação a eles, evitando-se estudar outros com os quais se antipatiza.

Note-se o uso da palavra "base" na formulação da presente atitude. Ter uma atitude científica não significa ignorar os sentimentos, mas eles não devem ser usados tanto para orientar a curiosidade e a pesquisa, quanto na conceituação dos fenômenos. Sentimentos devem ser conscientizados e levados em conta sempre que se fizer um julgamento, pois é impossível ter-se um conhecimento total sobre algo da realidade (conhecimento total só existe na Matemática, em áreas bem definidas; note-se que existem problemas matemáticos bem formulados que não têm solução). Por exemplo, se há duas teorias coerentes conflitantes sobre um mesmo assunto, e não há evidências de qual se adapta melhor à realidade, pode-se usar um sentimento de simpatia por uma delas para adotá-la provisoriamente; mas essa razão da adoção deve ser conscientizada.

Por outro lado, há sentimentos essenciais em uma atividade científica, como por exemplo o entusiasmo que se deve ter por descobrir coisas novas e obter mais conhecimento. Certos sentimentos também deveriam ser usados na escolha da pesquisa e na divulgação dos resultados. Por exemplo, um certo crivo moral poderia impedir um veterinário de sacrificar animais em suas pesquisas, ou um biólogo de usar células-tronco de embriões humanos, se for necessário matar esses embriões; se foi feita alguma descoberta que pode representar um perigo ecológico ou humano, talvez o pesquisador, baseado em seus sentimentos, decida não divulgá-los (o que lembra a excelente peça de F. Dürrenmat, Die Physiker, "Os Físicos", escrita em 1961, considerada sua melhor peça [DÜR; ver também https://en.wikipedia.org/wiki/Die_Physiker]).

3.6 A descrição de fenômenos e a formulação de conceitos e teorias devem ser dirigidas exclusivamente para a compreensão e serem universais.

Este pré-requisito é uma consequência do anterior. Um contra-exemplo seria transmitir conceitos entusiasticamente, tentando influenciar os sentimentos do receptor para que este se convença da validade dos argumentos. Espero que os leitores de meus artigos e livros percebam que neles procuro dirigir-me exclusivamente à compreensão, e não aos sentimentos de quem os lê.

3.7 Não ter absolutamente nenhum preconceito, em qualquer área de conhecimento, isto é, estar-se sempre disposto a verificar qualquer fato ou fenômeno, ou estudar qualquer teoria.

Por exemplo, se alguém diz "O prédio Martinelli [o edifício alto mais antigo da cidade de São Paulo] ruiu", uma atitude científica seria dizer: "Isso parece muito estranho, pois ele estava lá desde 1929, mas vou investigar para confirmar." Uma atitude não-científica, seria dizer: "Isso é bobagem, ele está lá desde 1929, nunca ruiu e nem vou me importar com isso." Note-se como um preconceito encerra a pesquisa.

Um outro exemplo é a teoria das cores de Newton [NEW]. Nela, ele claramente parte da ideia preconcebida de que a "luz branca" é composta das cores do arco-íris, e monta suas experiências para comprovar essa sua teoria. Por isso é que usou uma abertura particular em sua janela, e uma certa distância do prisma ao anteparo, criando com isso um feixe de luz cuja dispersão produzisse as cores do arco-iris: "[...] at a round hole, about one third Part of an Inch broad made in the Shut of a Window. (sic)" [NEW, p. 26 (Prop. II, Theor. II, Exper. 3).] Se o feixe tivesse sido muito fino, ou o anteparo muito distante do prisma, apareceriam apenas três cores (vermelho, verde e violeta), e se fosse de diâmetro muito grande ou o anteparo colocado mais próximo apareceria uma parte branca em lugar do verde. Este, como se pode observar claramente afastando-se gradualmente o anteparo do prisma, resulta da superposição do amarelo com o azul. Recomendo ao leitor observar pessoalmente tudo isso: basta tomar dois papéis pretos e colocá-los sobre um papel branco, olhando a faixa branca assim formada através de um prisma cujo eixo deve ser paralelo a essa faixa. Para alterar a largura da faixa branca, pode-se mover um dos papéis pretos. Aproveite-se para repetir a experiência com dois papéis brancos sobre um dos pretos, formando uma fenda preta; ver-se-á o "espectro complementar", segundo a teoria das cores de Goethe. Nessa teoria, ele faz questão de não partir dessa ideia preconcebida de Newton [GOE, Vol. 3, p. 48: Der Newtonsche Optik – Erstes Buch, Erster Teil (A Óptica de Newton – vol. 1, parte 1), Props. 86-93; ver também ZAJ, p. 209; SEP, p. 142]. É interessante citar o físico Tolger Holtsmark: "Newton pensou ter explicado a existência do espectro por meio de um modelo físico da luz, ao passo que ele de fato usou a imagem do espectro para explicar um possível modelo físico da luz" [HOL T, p. 1235.]

Este requisito complementa o 3.3.

3.8 A visão conceitual de mundo adotada é coerente; se pontos logicamente conflitantes são conhecidos, procura-se investigá-los para resolver os conflitos.

3.9 Há interesse permanente por opiniões contrárias às próprias, especialmente se elas são bem fundamentadas.

Opiniões contrárias podem servir para se mudarem hipóteses de trabalho (cf. 3.1); elas devem servir pelo menos para se testar as próprias hipóteses e teorias e, eventualmente, colher mais argumentos em favor destas últimas.

3.10 A observação de fenômenos e a descrição conceitual dos mesmos deve sempre ser feita em plena consciência de vigília; o observador deve manter permanentemente a sua auto-consciência e a sua individualidade.

Contra-exemplos a essa característica são o uso de imagens obtidas em sonhos como se fossem conceitos, e de transmissões mediúnicas. No primeiro caso, as imagens dos sonhos, em lugar de serem tomadas literalmente, podem inspirar uma conceituação, como foi a conhecida vivência de F.A. Kekulé, que em 1865 sonhou com uma cobra mordendo seu rabo, inspirando-o a descobrir a forma do anel de átomos de carbono do benzeno. No segundo caso, há duas possibilidades a considerar: o médium está inconsciente ou está consciente durante suas observações ou transmissões. A primeira situação choca-se diretamente com o requisito em questão. Um caso da segunda situação é a psicografia: claramente, o médium que a faz não está expressando sua individualidade, pois transmite conhecimentos que não possui e usa um estilo de redação que não é o seu; sua individualidade é como que substituída nessa atividade.

Somente com a preservação deste pré-requisito é que se pode garantir que não há erro nas observações e na descrição de fenômenos e de conceitos. Uma das mais conhecidas máximas de Goethe, que infelizmente não é geralmente reconhecido como um grande cientista, apesar de suas contribuições científicas e de ter introduzido um método científico efetivo, é: "Nossos sentidos não enganam, o julgamento engana ("Die Sinne trügen nicht, das Urteil trügt" [in Maximen und Reflexionen, No. 527]). Quando o observador está consciente ao fazer suas observações, ele pode reconhecer que seus sentidos não estão sendo suficientemente acurados, ou o aparelho usado em medições tem limitações, ou reconhecer que, eventualmente, há diferentes julgamentos que podem ser feitos a partir de uma mesma observação.

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Quando uma atitude é contrária a algum desses requisitos, denominá-la-ei de "atitude anti-científica".

É fundamental reconhecer que a atitude científica como caracterizada aqui não engloba toda a atividade humana, pois nem toda ela é cognitiva. De fato, existem pelo menos outras duas: as atitudes artística e social. Vou discorrer muito brevemente sobre ambas, pois o assunto foge ao escopo deste artigo.

Nessas duas atitudes, os sentimentos adquirem fundamental importância, contrariamente ao requisito 3.5. Além disso, o aspecto individual, subjetivo, é absolutamente essencial nas duas. De fato, o artista deve obrigatoriamente colocar em sua obra sua particular maneira de expressar algo objetivo ou subjetivo, contrariamente à atitude científica, que deve levar a algo universal e ser expressa universalmente. Em outras palavras, um objeto de arte é algo objetivo e universal, e o que ele expressa também pode ser universal, mas a maneira como essa expressão é manifestada deve ter algum elemento subjetivo da individualidade do artista e depender da individualidade do observador (para mais detalhes, veja-se meu artigo "O computador como instrumento de anti-arte"). Por exemplo, um pintor pode representar a fome ou o medo de uma maneira, um outro de outra maneira distinta, o que é bem nítido na pintura expressionista. É interessante notar que qualquer obra de arte deve necessariamente tocar os sentimentos do observador, isto é, a subjetividade dele é parte essencial; o contrário se passa com uma obra científica. Uma obra que é fruto apenas de conceituação objetiva, e o meio de expressão é universal, independendo da interpretação do observador, não é uma obra de arte, e sim de ciência. A ciência tem como objetivo primário a produção de conceitos para a compreensão do mundo; por outro lado, o objetivo primário da arte é a produção de objetos que devem ser captados com os sentidos, provocando alguma sensação ou sentimento. Nessa linha, é interessante notar que a arquitetura é a arte mais objetiva, e a poesia a mais subjetiva.

A atitude social também difere da atitude científica pois a primeira envolve necessariamente ações sobre indivíduos e sua subjetividade. Se estes pudessem ser tratados objetivamente, os economistas sempre teriam sucesso em suas teorias e práticas. Uma das atitudes sociais mais importantes é a compaixão, isto é, sofrer com o sofrimento de outrem. Ela não é derivada de modo algum de uma atitude científica. A "inteligência emocional" de Daniel Goleman [GOL], de importância social fundamental, inclusive profissionalmente, também não é fruto de uma atitude científica, e sim de uma atitude social.

4. Materialismo

Vou caracterizar materialismo como a visão de mundo que admite apenas a existência de fenômenos físicos no universo. Segundo ela, o mundo é constituído apenas de matéria e energia físicas, e os fenômenos que se passam com elas têm causas exclusivamente físicas.

Apesar de não se saber cientificamente o que é matéria, temos uma noção intuitiva da mesma, pois defrontamo-nos com ela por meio de nossos sentidos. Temos também uma noção intuitiva de energia, pois qualquer ação física que fazemos exige um certo esforço, denominado comumente de "trabalho" na Física.

Há dois tipos de materialismo. Denominarei o primeiro de materialismo científico, caracterizado por adotar aquela visão de mundo dentro de uma atitude estritamente científica, como caracterizada no item 3. Chamarei o segundo de materialismo-crença, que é a crença naquela visão de mundo e, portanto, não segue uma atitude científica, especialmente as características 3.1 (já que envolve alguma crença), 3.2 (no sentido de não se ter curiosidade sobre a possibilidade de existência de fenômenos não-físicos) e 3.7 (no sentido de que há uma ideia preconcebida de que só existem fenômenos físicos no universo).

A diferença mais típica entre os dois consiste em que um materialista científico deve estar aberto e se interessar por visões de mundo não-materialistas, estando disposto a rever sua posição se for convencido de que existem fenômenos não-físicos. Por outro lado, um materialista-crente toma sua visão de mundo como dogma, e não está aberto a visões de mundo que admitem a existência de fenômenos não-físicos: tipicamente, ele não só não procura saber como são essas outras visões, como evita entrar em contato com qualquer visão que não seja materialista.

Por exemplo, um materialista-crente diz: "É óbvio que nosso pensamento é gerado pelo nosso cérebro, como poderia ser diferente?" ou "É óbvio que a evolução darwinista é uma realidade, como poderia ser diferente?" Por outro lado, um materialista científico diria: "Segundo minha concepção de mundo, o pensamento é gerado pelo cérebro, mas como não sabemos exatamente como é esse processo, estou aberto a outras explicações, independentemente de que conceitos e experiências elas usam. Quem sabe elas podem apresentar um edifício teórico coerente e abrangente, e aí mudarei minhas hipóteses fundamentais." O mesmo para a evolução darwinista. Isto é, o materialista científico toma essas duas concepções como teorias (o que realmente são), e não como realidades ou dogmas, como muitas vezes é o caso com materialistas-crentes.

Denominei o primeiro tipo de "científico" por uma simples razão: um cientista, por necessariamente adotar a atitude científica descrita no item 3, não deveria ter preconceitos e deveria ter uma abertura total a tudo. Uma das atitudes mais frequentes dos materialistas-crentes é terem um total preconceito contra qualquer explicação que não seja baseada em fenômenos puramente físicos, que eles também chamam de "naturais". É muito comum eles negarem-se a estudar qualquer teoria que envolva processos não-físicos, e a examinar evidências desses processos. É também muito típico eles ridicularizarem qualquer teoria ou visão de mundo que use fenômenos não-físicos em suas explicações, como foram os casos de Freud e de Bertrand Russel e, mais recentemente, Richard Dawkins.

Obviamente, existem variações do materialismo-crença: um materialista pode adotar uma atitude científica em relação a certos fenômenos, e uma atitude de crente frente a outros. Por outro lado, existe um único tipo de materialismo científico, pois se uma pessoa o adota, não pode ter nenhuma crença.

É muito importante considerar o seguinte: o que caracteriza uma pessoa como materialista, de qualquer matiz, é a maneira como ela pensa. Uma pessoa pode falar frequentemente de Deus (independente do que compreende ou não compreende com essa palavra), mas se sua maneira de pensar é materialista, isto é, procura e usa somente causas físicas para os fenômenos, aplicados exclusivamente a objetos e forças físicas, é dessa maneira que deveria ser classificada.

Muitas pessoas – ou talvez todas – que se dizem "ateus" são na realidade materialistas, em geral do tipo crente. Essa denominação de "ateu" tem muitos problemas. O Aurélio Eletrônico Séc. XXI define-a como "Diz-se daquele que não crê em Deus ou nos deuses; ...", isto é, ela parte de Deus ou de deuses. Portanto, um ateu terá que explicar inicialmente o que é Deus ou o que são os deuses, para depois dizer que não acredita neles. Se ele disser que acredita que amanhã não vai chover, parte do princípio de que se entende o que é "amanhã" e o que é "chover". Mas o que ele próprio entende por Deus ou por deuses? O ateu teria que caracterizar precisamente essas entidades, e sua atuação, para que se possa discutir a sua existência ou não. Note-se que é possível descrever claramente algo fisicamente impossível, como por exemplo um castelo que flutue no ar. Além disso, claramente aquelas entidades não são físicas. No entanto, qualquer materialista não admite a existência de algo ou de processos não-físicos; nesse caso, como é que vai caracterizar algo não-físico, para que se possa discutir esse algo com ele? Voltarei ao problema do conceito de Deus no item 8, em relação ao monoteísmo de várias religiões.

Dawkins denomina-se ateu, algo que prevalece em todo seu livro [DAW b]. Mas ele é claramente alguém com mais do que com uma simples falta de crença em Deus, seja lá o que essa entidade for: ele não pode assumir a existência de nenhum processo não-físico, isto é, ele é na realidade um materialista.

Várias pessoas dizem-se "céticas" quando, na realidade, são materialistas. O mesmo Aurélio traz, para cé(p)tico: "Que duvida de tudo; descrente." Ora, pois! Se o cético duvida de tudo, ele necessariamente duvida da própria existência (que é admitida de maneira ingênua por todos que o conhecem). Nesse caso, ele seria pelo menos um esquizóide, senão tiver problemas psicológicos muito mais graves. Tenho a impressão de que uma pessoa declara-se cética para indicar que não acredita em nada que seja não-físico; nesse caso, a minha denominação de "materialista" caracteriza muito melhor essa pessoa. Aliás, esse "acredita" classifica-a como materialista-crente, segundo minha caracterização no fim do item 2.

Muitos céticos são materialistas-crentes. Um exemplo desses parece ser Michael Shermer, que escreve a coluna permanente Skeptic da revista Scientific American, e é editor de Skeptic – ver em https://www.skeptic.com. Nesse site, na seção Discover Skepticism afirma-se (minha tradução): "O ceticismo moderno está incorporado no método científico, que envolve coletar dados para formular e testar explicações naturalistas para fenômenos naturais." Assim, excluem-se todos os fenômenos não-naturais, isto é, não-físicos, e se recusa examiná-los com seriedade. Portanto, para Shermer a ciência é materialista-crente, pois só admite explicações materiais e fecha-se às não-materiais.

O positivismo de Auguste Comte (1798–1857), baseava-se na experiência física (herança dos empiristas como Hume e Berkeley) e refutava qualquer metafísica (além da Lógica e da Matemática, classificadas como "ciências formais puras"). Assim, ele também foi um materialista que, por sinal, teve grandes influências no pensamento de muitos intelectuais brasileiros.

Parece-me que a minha denominação de "materialista" caracteriza melhor uma pessoa do que classificá-la como ateu, cético, ou positivista.

Para o restante deste artigo, é fundamental reconhecer-se que um materialismo coerente deve: a) limitar a individualidade humana somente à hereditariedade e à influência passada do meio ambiente; b) negar o livre arbítrio; c) negar a responsabilidade individual e coletiva; d) negar a existência de moral; e) negar a possibilidade de uma ação ser devida a um amor altruísta; f) negar um sentido para o universo e a vida humana. Vou justificar essas minhas afirmações.

a) A questão da individualidade é trivial: se o ser humano é só matéria, não pode haver outro componente na individualidade que não seja devida à hereditariedade e ao meio ambiente.

b) Considero como livre arbítrio, ou a liberdade de se fazer conscientemente ações interiores (como pensar) ou exteriores (executar alguma ação para fora, como atuar com as mãos e pés, movimentar-se ou falar), a possibilidade de um ser humano executar uma ação sem que haja nenhuma imposição interior ou exterior para isso. A imposição exterior é clara: forçar-se, tanto física como emocionalmente, alguma pessoa a executar algo. Um exemplo do segundo caso é forçar-se alguém a uma ação pondo-se-lhe medo de que algo ocorra consigo se não a executar; um outro exemplo é forçar, por meio de condicionamento com propaganda, uma pessoa a executar uma certa ação, como comer ou comprar algo. Um exemplo de uma imposição interior é agir-se segundo um sentimento, como não falar com uma pessoa que, à primeira vista, parece ser antipática.

Uma ação é executada em liberdade se existem outra ações possíveis, e a escolha da primeira é feita em plena consciência, examinando-se mentalmente quais seriam as consequências da execução de cada ação. Isso não exclui a execução de uma ação baseada em um sentimento, como seria o caso de uma pessoa que está fazendo um regime para emagrecer mas, em um dia de calor, resolve conscientemente quebrar o regime para saborear um bom sorvete.

O materialismo tem que forçosamente negar o livre arbítrio pois da matéria não pode advir liberdade: ela está sempre sujeita às "leis" e condições físicas. Aqui há duas possibilidades. Pode haver um determinismo, isto é, dado o estado de um corpo e certas condições em seu meio ambiente, ele sempre sofrerá a mesma transformação. Um exemplo famoso de pessoa que era 100% determinista, isto é, totalmente contra o acaso, foi Einstein, seguindo a filosofia de Baruch Spinoza, (ver, por exemplo, o excelente [ISA, pp. 102, 335] e também [JAM, pp. 37, 69-71]).

A outra possibilidade é a existência da aleatoriedade ou acaso, isto é, dadas certas condições iniciais, a matéria pode comportar-se de várias maneiras possíveis, sem que haja uma causa para a tomada de alguma dessas variantes. O acaso é a base da Mecânica Quântica, que tem um enorme sucesso experimental, mas que transformou o mundo atômico em algo incompreensível. Se um ser humano executa uma ação aleatoriamente, não age em liberdade, pois essa ação não se deveu a um ato consciente.

Um velho raciocínio pode ajudar a esclarecer melhor essa questão da liberdade não poder resultar da matéria. Um átomo obviamente não tem liberdade. Portanto, uma molécula, formada por um grupo de átomos, também não pode ter liberdade. Uma célula, formada por um grupo de moléculas, idem. Um grupo de células, formando um órgão, ibidem. Finalmente, um grupo de órgãos formando um ser humano também não pode ter liberdade. Essa é uma das razões para cientistas e materialistas coerentes negarem a possibilidade do livre arbítrio, que consideram uma ilusão. Einstein foi absolutamente categórico a esse respeito; em suas palavras, "Sou determinista. Não acredito no livre-arbítrio." [ISA, p. 397]; "Não acredito, em absoluto, no livre-arbítrio no sentido filosófico. Cada pessoa age não só sob pressão das compulsões externas, mas também de acordo com as necessidades internas." [p. 401]; "Os seres humanos, em seus pensamentos, sentimentos e atos, não são livres, mas estão presos pela causalidade do mesmo modo que as estrelas em seus movimentos." [p. 401.] Quanto à ilusão do livre-arbítrio, ele disse: "Sou compelido a agir como se existisse o livre-arbítrio já que, se desejo viver numa sociedade civilizada devo agir de modo responsável." [p. 403.]

c) É óbvio que, sem liberdade, não há responsabilidade pessoal ou coletiva. Einstein negava-a, por achar que cada ação de um ser humano é consequência do seu estado e do estado do meio ambiente: "Sei que, filosoficamente, um assassino não é responsável por seu crime, mas prefiro não tomar chá com ele." [p. 403.] A propósito, ele não era coerente nesse e em outros aspectos filosóficos pois, depois que soube, em 1941, das atrocidades perpetradas pelos nazistas nos campos de concentração e extermínio, jogou a responsabilidade disso não só sobre eles, mas sobre todo o povo alemão: "Os alemães, como nação inteira, são responsáveis por esses assassinatos em massa e devem ser punidos como um povo." [ISA, p. 514, JAM, p. 71.] Aliás, é raro encontrar um materialista realmente coerente pois, por exemplo, muitos admitem a liberdade humana, já que prezam pelo menos a liberdade intelectual; além disso, o conceito de liberdade arraigou-se na humanidade profundamente desde o século XIX. É possível que o inconsciente dessas pessoas seja mais sábio do que seu consciente; devido ao primeiro, elas têm uma intuição de que o ser humano pode ter livre-arbítrio, e não percebem que isso contraria sua visão materialista.

d) Sem responsabilidade, não há moral. Nesse sentido, é necessário distinguir claramente "moral" de "ética". Esta última refere-se a normas estabelecidas por um grupo, em geral profissional. Por exemplo, é ético um advogado defender e tentar convencer outras pessoas (um júri, por exemplo) da inocência de uma pessoa a qual ele está plenamente convencido de ter cometido um assassinato; mas não considero essa uma ação moral. Nesse caso, uma ação moral seria esse advogado reconhecer publicamente a culpabilidade do réu, mas mostrar objetivamente ao júri eventuais atenuantes do caso.

e) Um ato é fruto de um amor altruísta se ele beneficia algo ou alguém, é executado em plena consciência e liberdade, e não traz nenhum benefício para a pessoa que o executa. Portanto, também o amor altruísta não faz sentido do ponto de vista materialista. Desse ponto de vista, só fazem sentido ações egoístas ou movidas pela ambição. A esse respeito, vale a pena notar que a teoria darwinista da evolução é baseada no egoísmo: a luta pela sobrevivência do indivíduo e da espécie, não importando o que acontece com outros indivíduos ou espécies. Estou ciente de que Darwin formulou uma teoria especulativa tentando explicar o altruísmo: uma pessoa altruísta é melhor aceita pela comunidade e assim tem mais chance de sobreviver e deixar uma prole. É realmente estranho que o altruísmo derive de um egoísmo! Mas Richard Dawkins expressou muito bem o ponto de vista materialista: em sua especulação, o egoísmo é inerente ao ser humano, e está em seus próprios genes, como se estes pudessem ter consciência [DAW a]. Da ciência materialista moderna não se chega ao altruísmo.

É interessante notar que muitos cientistas são idealistas, e têm grande satisfação em suas atividades pois sentem que assim ajudam altruisticamente a humanidade. Apesar de isso ser muito positivo, trata-se no fundo de uma incoerência da parte deles quando são materialistas (o que acontece com a maioria deles, senão com a quase totalidade), pois esse sentimento choca-se com a falta de sentido do altruísmo do ponto de vista material.

f) Da matéria não pode resultar algum sentido para o universo e a para a vida humana, pois eles são frutos do acaso. Por exemplo, na seleção natural darwinista predomina o mais apto, mas ele tem essa característica por acaso, devido a mutações genéticas aleatórias (segundo o neo-darwinismo), devido a combinações aleatórias de genes dos pais e encontros casuais com outros indivíduos, onde ele pode predominar. Curiosamente, Dawkins repetidamente escreve que a seleção natural elimina o acaso [DAW b, pp. 141, 145]. No caso do ser humano, uma visão materialista deve necessariamente admitir que o nascimento (ou melhor, a concepção) e a morte são acasos. Portando, desse ponto de vista a vida humana não tem sentido: ela simplesmente existe; daí, por exemplo, o existencialismo de Sartre. O desenvolvimento do universo, do sistema solar, e da Terra, o aparecimento da vida e a evolução dos seres vivos também são basicamente devidos a acasos. Assim, o universo inteiro não tem sentido.

Muitos materialistas convictos têm dificuldade em compreender o que poderia significar um sentido para a vida, o que é perfeitamente compreensível, pois da matéria e das forças físicas não se pode chegar a ele.

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Estamos na era do materialismo. Uma pessoa que é materialista está totalmente de acordo com a maneira atual de ser da humanidade. De fato, pode-se tratar a história da humanidade como a "queda" na matéria e no materialismo. A maravilhosa imagem bíblica do Paraíso [Gen 2:8] representa um período inicial em que o ser humano não tinha conhecimento e auto-consciência: ainda não havia "comido" da "arvore do conhecimento do bem e do mal" [2:17], ainda não reconhecia que estava "nu" [3:7]. Sua "expulsão" dele pode ser considerada como um símbolo para aquela queda. (A propósito, nesse sentido as expressões "Tentação" e "Pecado Original" não fazem sentido, pois só se pode cometer um erro se for possível fazer uma escolha, o que exige consciência e conhecimento.) Foi necessário à humanidade passar por essa "queda", pois é somente graças à nossa imersão e atuação na matéria que podemos cometer erros e portanto sermos livres: se fôssemos inconscientes, ou se só houvesse o bem, não poderíamos escolher e portanto não seríamos livres. A nossa auto-consciência e individualidade superior (conforme vou caracterizá-la no próximo item) também foram desenvolvidas devido a essa "queda" na matéria. No entanto, estamos na época em que essa fase do materialismo deve ser ultrapassada, porém sem perder tudo o que foi conquistado em termos de atitude científica, consciência, conhecimento, liberdade e individualidade. Vejamos o caminho que penso deve ser seguido.

5. Espiritualismo

Vou caracterizar como espiritualismo a visão de mundo que admite, além da matéria e energia físicas, e dos fenômenos físicos, tanto uma "substancialidade" não-física como fenômenos não-físicos que envolvem essa "substancialidade". Além disso, é parte essencial do espiritualismo a hipótese de que fenômenos não-físicos podem influenciar a matéria física. Neste item exporei minha teoria de como isso poderia ocorrer em certos fenômenos nos seres vivos e no ser humano. Estou ciente dos problemas usar uma caracterização por negação, mas quero partir de algo conhecido, no caso, o mundo físico. Por "não-físico" refiro-me a algo que existe em um plano que não é o físico, não podendo ser observado fisicamente. Não se deveria estranhar a existência de fenômenos fisicamente ocultos pois, por exemplo, não se pode observar fisicamente os sentimentos, os pensamentos e os impulsos de vontade de outra pessoa.

Há dois fatos que não fazem sentido físico, e que poderiam ser tomados como uma forte indicação de que o espiritualismo pode ter algum fundamento: a origem da matéria e da energia físicas, e os limites do universo.

Analogamente ao materialismo, há dois tipos de espiritualismo. Denominarei o primeiro de espiritualismo científico, caracterizado por adotar aquela visão de mundo dentro de uma atitude estritamente científica, como caracterizada no item 3. Chamarei o segundo de espiritualismo-crença, que é a crença naquela visão de mundo e, portanto, não segue uma atitude científica.

Pode parecer estranho que um espiritualista possa ter uma atitude estritamente científica, como caracterizada no item 3. No entanto, se se examinar o que foi exposto nesse item, ver-se-á que de modo algum ele restringe os fenômenos do universo apenas aos fenômenos físicos.

Analogamente ao materialismo, há apenas um tipo de espiritualismo científico, mas há vários tipos de espiritualismo-crença. Nesse último caso, adota-se uma atitude científica em relação a certos fenômenos, e uma crença em relação a outros.

É muito importante reconhecer que a visão de mundo espiritualista científica, como caracterizada, é um superconjunto próprio da visão materialista, isto é, um espiritualista científico admite todos os fatos científicos físicos, mas admite algo mais, de natureza não-física. Assim, esse espiritualismo é uma ampliação do materialismo científico. É importante salientar a expressão que empreguei: "fatos científicos". De fato, um espiritualista não é obrigado a aceitar julgamentos materialistas, como por exemplo as presunções de o pensamento originar-se no cérebro e da evolução darwinista, pois esses não são fatos científicos: são especulações científicas. Um outro exemplo é a presunção de que a Terra tem cerca de 6 bilhões de anos; esse dado não é um fato científico: é o resultado de um cálculo que representa uma extrapolação extremamente grosseira (de medidas de decaimento radioativo). O cálculo pode estar correto, mas deveria ser simplesmente chamado de "extrapolação do decaimento radioativo" e não de "idade da Terra", pois isso é um julgamento. Essa extrapolação, bem como outras baseadas em outros fenômenos, parte do pressuposto que as constantes físicas foram sempre as mesmas, e não dependem, por exemplo, de condições totalmente diferentes das nossas em termos físicos. A propósito, para evitar mal-entendidos, vou colocar aqui que não sou adepto do que se denomina de Young Earth Criationism, que diz que a Terra tem cerca de 6.000 anos.

Um espiritualista-crente pode chegar a negar fatos científicos, pois pode ter o preconceito de não estudá-los ou verificá-los. Alguns fatos científicos podem inclusive contrariar suas crenças pois, como tais, não estão sujeitas a revisão, caso contrário estariam no caminho de serem hipóteses de trabalho.

O espiritualismo-crença pode também ser denominado de "misticismo". Em geral, os místicos não procuram compreender os fenômenos não-físicos; para eles, bastam os sentimentos inspirados pelos últimos, e a intuição de que existem.

No item 8 vou mostrar que muitos adeptos das religiões instituídas são na verdade materialistas.

É fundamental separem-se fenômenos físicos de não-físicos. Qualquer explicação desses últimos em termos físicos, como por exemplo fenômenos paranormais (como a pretensa telepatia) como sendo causados por "ondas" de alguma energia física desconhecida, é um materialismo e não um espiritualismo. Note-se que "ondas" são fenômenos mecânicos (como por exemplo as causadas em um lago quando se lança nele uma pedra, ou as causadas por sons propagando-se no ar); a sua aplicação em fenômenos não-mecânicos é problemática mesmo do ponto de vista físico. Por exemplo, qualquer onda tem que se propagar em um meio físico. Qual é o meio em que se propagam as ondas eletromagnéticas? Pior ainda, qual o meio de propagação das ondas de probabilidade da Mecânica Quântica, já que probabilidade é um conceito puramente matemático, não tendo consistência física?

Dawkins argumenta que o Deus das religiões instituídas não pode ser o projetista (o intelligent designer) de todo o universo, como elas supõem, por que também teria que haver um projetista que o projetou; por outro lado, como projetista, teria que ser mais complexo e improvável que seres vivos complexos e improváveis [DAW b, 188]. Aqui vemos um exemplo claro da mistura de conceitos físicos com não-físicos. Claramente, essas religiões tomam Deus como uma entidade não-física. Mas projetar e construir entidades físicas, tais como os seres vivos, significa agir sobre o mundo físico, conformando-se às suas leis e condições; falar sobre a improbabilidade de um ser vivo atingir uma alta complexidade é também um raciocínio que se aplica ao mundo físico. Mas especular sobre a necessidade de um ente não-físico como Deus ter sido projetado é aplicar um raciocínio baseado no mundo físico para uma entidade não-física. Especular que um ente não-físico deve necessariamente ser mais improvável e complexo do que seres vivos improváveis e complexos é novamente aplicar sobre um ente não-físico um raciocínio baseado no mundo físico. Curiosamente, Dawkins relata que, em um recente congresso sobre ciência e religião, nenhum representante das religiões instituídas foi capaz de rebater razoavelmente essas suas duas objeções [p. 187]. De meu ponto de vista, isso é absolutamente claro: as religiões instituídas também misturam conceitos físicos com não-físicos (além de não terem um conceito claro do que Deus é).

Voltando a grandes problemas da Física, eles podem ser uma indicação de que, no nível atômico e no cósmico de estrelas, galáxias e nébulas se está na fronteira do nível físico com o não-físico. Por exemplo, não são compreensíveis à razão baseada na nossa experiência da matéria, isto é, em nossos sentidos, no âmbito da Mecânica Quântica, a não-localidade, em que existe aparente influência instantânea entre "partículas" atômicas ou sub-atômicas "acopladas" (entangled), independentemente da distância entre elas [GRE, p. 83], e o spin das "partículas", que não corresponde à nossa noção de rotação [p. 104]. Por outro lado, a noção relativística de tempo e espaço, em que estes dependem da velocidade, não corresponde à nossa percepção de que o tempo é absoluto, como na Mecânica Newtoniana. Além disso, o tempo dos modelos da Física é reversível [p. 145], isto é, para os seus modelos não há distinção entre passado e futuro [p. 156], o que se choca com a nossa experiência: nunca ninguém viu um leite derramado voltar espontaneamente para a garrafa. Além disso, temos uma noção precisa do "agora", que também não faz sentido na Física [p. 141]. Outros grandes problemas da ciência são a "energia escura", que produziria a repulsão que resulta na expansão do universo, formando ¾ do conteúdo do mesmo [CON, p. 25] (mas não afeta "pequenas" distâncias como as de nossa galáxia) e a "matéria escura", que consistiria em 85% de toda a matéria no universo [p. 27], mas que não se sabe o que são.

Como mostrei no item 4, o livre-arbítrio não faz sentido do ponto de vista materialista. Mas faz todo o sentido do ponto de vista espiritualista científico. Vou justificar isso colocando uma aqui uma teoria minha de como o não-físico pode atuar sobre o físico, levando à liberdade do ser humano. Vou ser breve, pois já discorri sobre isso extensamente no meu artigo "Por que sou espiritualista". Suponha que exista em cada ser vivo um "membro" não-físico associado a ele. Suponha-se ainda que nos seres vivos existam vários fenômenos fisicamente não-deterministas. Um exemplo disso é que, a partir de um mesmo gene do DNA podem ser formadas várias proteínas diferentes [HOL C, p. 78]. Em seu excelente livro, Jeffrey Smith diz: "Havia uma velha teoria genética de que cada gene era codificado para produzir uma única proteína, o que levou biólogos à estimativa de que deveria haver 100.000 genes no DNA humano para abranger todas as proteínas. Quando em junho de 2000 esse número de genes foi estimado em 30.000, isso explodiu o mito ‘um gene, uma proteína’. Na verdade, a grande maioria dos genes pode codificar mais de uma proteína; alguns podem produzir várias." [SMI J, p. 117.] Minha teoria é de que a escolha de qual proteína deve ser formada a partir de um certo gene não requer energia. Portanto, uma das maneiras de um "membro" não-físico de um ser vivo poder atuar sobre a matéria física é justamente nessa escolha. No meu artigo citado, mostro que há um aparente não-determinismo de uma célula manter seu estado atual, começar a subdividir-se (mitose ou meiose) ou começar a morrer (apoptose). A escolha de um desses caminhos não requer energia, portanto aqui pode-se ter novamente a ação de um membro não-físico atuando como um modelo (mental!) para o crescimento ou regeneração de tecidos vivos. Essa é uma possibilidade para explicar certos fenômenos morfológicos dos seres vivos, que são um mistério do ponto de vista puramente físico, como por exemplo a simetria das orelhas de uma pessoa, as simetrias de alguns desenhos coloridos extraordinários das asas das borboletas (ver no artigo citado fotos minhas mostrando exemplos dessas simetrias), etc. Além de um gene poder dar origem a proteínas diferentes, e células mudarem de estado, há muitas outras transições possivelmente não-deterministas em qualquer ser vivo, onde a escolha de qual transição será tomada, não requerendo energia, pode sofrer uma influência de algo não-físico associado unicamente àquele ser. Talvez um exemplo disso seria qual combinação de genes é feita na formação de um ovo, a partir dos genes dos pais. Um outro é o fato de que, se um neurônio estar em um certo estado, com os mesmos impulsos de entrada às vezes ele dispara, outras vezes não; isso pode significar que seu disparo é não-determinista. Nesse caso, nosso pensamento não-físico pode agir sobre os neurônios, produzindo sua atividade (vejam-se mais detalhes sobre isso em meu artigo citado). Note-se aqui possíveis consequências físicas de se assumir a existência de membros não-físicos em seres vivos; compare-se essa hipótese com o conceito totalmente abstrato do Deus das religiões instituídas, as quais não podem explicar como essa entidade age.

Nesse esquema, a liberdade do ser humano advém da atuação consciente de um membro não-físico individual, que faz parte de cada pessoa, e que denominarei de "individualidade superior", escolhendo uma dentre várias ações não-deterministas. Por exemplo, suponha que uma pessoa está numa esquina de um quarteirão retangular e necessita ir a pé até a esquina diagonalmente oposta do mesmo quarteirão. Ela pode seguir um dos dois possíveis caminhos: iniciar pela calçada da esquerda, ou pela da direita. Suponhamos que não haja nada que lhe dê preferência por um caminho ou por outro (como seriam os casos de um deles ter menos tráfego, ou ter um visual mais agradável). Se nessas condições ela fizer uma escolha consciente, isto é, pensar sobre os dois caminhos e decidir qual vai tomar (em lugar de fazê-lo instintivamente), e seguir essa escolha, ela terá agido em liberdade. Uma ação instintiva poderia ser nesse caso tomar um caminho de costume: essa não seria uma ação livre. Note-se que pode haver condições de preferência para cada um dos caminhos (por exemplo, um tem menos tráfego, o outro é mais bonito): ainda assim, a escolha consciente pode ser um ato de liberdade pois, por exemplo, pode-se tomar um dos caminhos, justamente por se reconhecer uma preferência pelo outro. No entanto, se a escolha seguir simplesmente a preferência por um dos dois caminhos, como citado, não terá sido feita em liberdade. Sempre que se segue um sentimento ou um impulso inconsciente de vontade, não se age em liberdade.

Obviamente, um materialista vai dizer que a pessoa que está na esquina tem a ilusão de poder escolher um dentre os dois caminhos. É importante saber-se que ele não pode provar isso, de modo que se pode perfeitamente fazer a hipótese de que a escolha foi livre. No artigo citado dou exercícios puramente mentais de controle do pensamento, permitindo a qualquer pessoa observar mentalmente que tem possibilidade de escolher o próximo pensamento em liberdade, dando-lhe assim evidências pessoais de que existe o livre arbítrio.

Nas decisões conscientes o "membro" não-físico, que chamei de "individualidade superior", pode tomar uma decisão mental em liberdade, e fazer com que a pessoa acabe agindo em liberdade. Uma observação acurada mostra que os animais agem sempre por instinto ou por condicionamento: no sentido exposto, eles não podem ser livres. Portanto, pode-se concluir que eles não possuem esse membro não-físico "individualidade superior" (obviamente, também plantas e minerais não o possuem). Uma consequência disso é que, desse ponto de vista espiritualista, o ser humano não é um animal. O materialismo não pode chegar a essa conclusão, e não é à toa que denomina o ser humano de "animal racional" (curioso: por que, analogamente, não se denomina um animal de "planta móvel"?). A propósito, uma criança também não tem liberdade: a sua "individualidade superior" ainda não impregnou suficientemente o seu corpo físico, que obviamente ainda não foi suficientemente desenvolvido, ao ponto de ela conseguir manifestar-se conscientemente por meio do pensamento.

Uma hipótese interessante é que essa individualidade superior não tem sexo (que é uma característica do corpo físico e das funções vitais, bem como da alma, como por exemplo a caracterizada por Jung), nem raça (isto é, independe da hereditariedade) e nem nacionalidade. O seu desenvolvimento e manifestação cada vez mais intensa no decorrer da história, é que teria levado à igualdade de direitos entre os sexos, ao anti-racismo e ao universalismo (anti-nacionalismo). Esses impulsos, que conjeturo não poderem ser explicados por seleção natural, são claramente modernos e estão ficando cada vez mais intensos. Uma das suas lindas manifestações é o respeito à essência do ser humano, independente do que ele é exteriormente; daí todo o movimento relativamente recente de proteção e de se dar certas vantagens para os deficientes físicos e para os idosos: em ambos, a individualidade superior é da mesma natureza de que a de todos os seres humanos; no entanto, essa individualidade não consegue manifestar-se plenamente, mas não deixa de existir. Em outras palavras, o que importa realmente em um ser humano é essa sua essência não-física. Numa criança pequena, já existe também essa individualidade, mas ela ainda não consegue manifestar-se, pois depende do desenvolvimento do corpo físico, das funções vitais e também da maturação da percepção, dos sentimentos, da consciência, etc. Note-se como apareceu modernamente um respeito também pelas crianças – a ponto de se terem instituído leis proibindo que sejam castigadas fisicamente, o que era algo considerado natural no passado. Há hoje em dia uma forte intuição de que cada criança traz consigo certas características e certos dons, que devem ser respeitados. De acordo com os conceitos aqui apresentados, eles são devidos a essa individualidade superior única em cada ser humano.

As religiões costumam falar em Deus – como vimos, sem caracterizar essa divindade e mostrar claramente como ela atua. Pois bem, o que denominei de "individualidade superior", por ser um membro não-físico único em cada ser humano, pode ser considerado o que cada um tem de divino dentro dela. Tenho a impressão de que muitas pessoas, quando dizem "Meu Deus!" estão inconscientemente referindo-se a essa divindade única que existe dentro de si. Afinal, Deus é universal, como ele pode ser de alguém? Dawkins formula a pergunta de como Deus "é um ser capaz de [...] falar com um milhão de pessoas simultaneamente [...]" [DAW b, p. 185] – novamente, uma mistura de conceitos físicos com não-físicos, mas que mostra bem como o Deus das religiões instituídas é universal (apesar de atuar em cada indivíduo). Por outro lado, a individualidade superior é individual, isto é, é realmente de cada um. Admitindo-se por hipótese de trabalho a existência dessa individualidade superior, o espírito passa a ser algo atuante, e não uma mera abstração como se tornou a noção de Deus. Ele pode ser percebido quando, em um estado meditativo, o pensamento concentra-se em si próprio. A propósito, Rudolf Steiner chamou a atenção para o fato de que o pensamento é a única atividade em que o objeto de uma ação coincide com ela própria [STE a, p. 39]; para pensar, nada mais é preciso do que o pensar [p. 36].

Como em uma cosmovisão espiritualista faz sentido considerar-se que existe a liberdade humana, também dentro dessa visão há sentido em se falar em responsabilidade, em moral e em amor altruísta que, como vimos, não fazem sentido de um ponto de vista estritamente materialista. Assim, somente o espiritualismo pode levar à suplantação consciente e coerente do egoísmo e da ambição. De fato, considero o amor altruísta um requisito essencial para a prática de um espiritualismo científico: o verdadeiro espiritualista deve dedicar um amor altruísta à natureza e aos outros seres humanos.

No fim do item 4 mencionei que o materialismo foi uma necessidade da humanidade. Desde o fim do século XIX ele deveria ser ultrapassado por um espiritualismo especial: trata-se justamente do espiritualismo científico. Não há saída para a humanidade: o materialismo e o espiritualismo-crença só podem continuar levando à destruição do mundo e da humanidade, que pode ser constatada pelos desastres provocados pela tecnologia e pelas crenças religiosas. Ambas estão a serviço do egoísmo e da ambição; só o espiritualismo científico pode levar a humanidade a assumir a atitude altruísta necessária para mudar o rumo das destruições atuais. É interessante notar que as religiões vão contra o livre arbítrio, pois impõem maneiras de pensar e de agir; por outro lado, o livre arbítrio não faz sentido de um ponto de vista materialista.

Infelizmente, não tenho nenhuma esperança na humanidade como um todo. Parece-me que não há possibilidade de reverter, em geral, a decadência crescente dos valores humanos, tanto devido ao materialismo quanto às religiões. Ela manifesta-se pelo império crescente do egoísmo e da ambição monetária e de poder, e por uma enorme influência exercida sobre os indivíduos, de um lado limitando sua liberdade, por exemplo condicionando-os a consumir e a ter certos pontos de vista (incluindo a indução de uma profunda veneração pela tecnologia), e do outro lado forçando-os a seguir cegamente interpretações literais de imagens religiosas transmitidas por várias escrituras e mitos. Mas tenho certeza de que essas tendências destrutivas podem, e devem, sim, ser revertidas individualmente. E é a indivíduos que estou escrevendo neste momento.

Não sou totalmente negativo ou pessimista: reconheço progressos altamente positivos na humanidade, como os movimentos dos direitos humanos, da paz universal e o ecológico. Mas o balanço final global parece-me ser altamente negativo. Não consigo ter, realmente, uma esperança na massa – basta considerar que cerca de metade da humanidade é condicionada e bestificada diariamente pela TV (ver meus artigos a respeito dos meios eletrônicos em meu site).

6. Combinações de materialismo e espiritualismo

Muitas pessoas adotam uma visão de mundo que é uma combinação das duas abordadas, isto é, para alguns fenômenos adotam a visão materialista, e para outros a espiritualista. É o caso de muitos cientistas, ao admitirem que a criação da matéria e da energia tem uma origem não-física, não tendo quanto a esse fato o preconceito de existirem apenas processos físicos; no entanto,